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Beth Goulart: 'Covid levou mamãe em 21 dias. Precisei mudar o nosso livro e transformar dor em palavra'

No comovente 'Viver É uma Arte', sua estreia na literatura, a atriz, cantora e dramaturga Beth Goulart revela como superou a perda do pai, Paulo Goulart, e a partida repentina da mãe, Nicette Bruno

Entrevista|Eduardo Marini, do R7

Beth Goulart mostra com delicadeza como se recuperou da perda dos pais
Beth Goulart mostra com delicadeza como se recuperou da perda dos pais Beth Goulart mostra com delicadeza como se recuperou da perda dos pais

O convite de uma editora, em 2020, levou a atriz, dramaturga, diretora e cantora carioca Elizabeth Miessa, 61 anos, a Beth Goulart, a planejar o embalo de mais um grande projeto familiar. A ideia era escrever, em parceria com a mãe, a atriz Nicette Bruno, um livro sobre os temas abordados em palestras feitas pelas duas desde a morte, em março de 2014, do marido de Nicette e pai de Beth, o ator Paulo Goulart.

Mas no meio do caminho estava a Covid – e ela não permitiu. Em 20 de dezembro de 2020, aos 87 anos, 21 dias após ser internada, e antes da chegada das vacinas, Nicette tornou-se mais uma vítima da pandemia. Abalada com a nova perda, mas firme na resistência, Beth sentiu a necessidade de escrever outro livro, agora sobre os ensinamentos adquiridos a partir “da dor e do impulso emocional” gerados pela morte do pai, seis anos antes, e, mais recentemente, pela rápida partida da mãe.

A nova ideia resultou em Viver É uma Arte – Transformando a Dor em Palavras (Editora Letramento, 138 págs., R$ 59,90 a edição impressa e R$ 34,90 o ebook), estreia comovente de Beth na literatura, após adaptações e textos feitos para teatro. Com delicadeza, a autora opta por um tom pessoal. Evita a armadilha de fazer de suas memórias, e também da trajetória ao lado dos pais ilustres, uma mera ode aos feitos da família no teatro, cinema e televisão.

Mas, como a participação do trio é inegavelmente importante, acaba também por trazer passagens úteis e saborosas que compõem a história das artes cênicas brasileiras nas últimas décadas. A estreia de Beth na literatura tem prefácio da escritora Nélida Piñon e posfácio da grande dama das artes cênicas brasileiras, Fernanda Montenegro. Viver É uma Arte será lançado na terça-feira (28), às 17h, no Grupo Mulheres do Brasil, na rua Tomás Carvalhal, 681, no Paraíso, em São Paulo. E no próximo dia 12 de julho, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, na avenida Afrânio de Melo Franco, 290, 2º piso, no Rio de Janeiro.

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Beth Goulart estreou profissionalmente em 1974, na peça Os Efeitos dos Raios Gama nas Margaridas do Campo, que rendeu a indicação ao Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) como atriz revelação. Ganhou vários outros prêmios no palco, entre eles Shell Rio 2000, Qualidade Brasil 2000 e Unesco 2003, além de cinco premiações pelo espetáculo Simplesmente Eu, Clarice Lispector (2009), de sua autoria e direção.

Participou de mais de 30 novelas e de 12 filmes de longa-metragem. Ocupa a cadeira 22 da Academia Brasileira de Cultura, que tem sua mãe Nicette como patrona. Nesta conversa exclusiva com o R7 ENTREVISTA, Beth dá detalhes sobre o livro, os ensinamentos dos pais, o processo de recuperação pessoal e os planos futuros. Prazer e delicadeza puros. Acompanhe:

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Conte-nos como foi o processo de mudança do projeto do livro.

Meu pai morreu em março de 2014, aos 81 anos. Minha mãe, em dezembro de 2020, aos 87, por complicações da Covid. Após a morte do meu pai, eu e mamãe vivemos coisas muito bonitas no teatro. Montamos o monólogo Perdas & Ganhos, adaptado e dirigido por mim e estrelado por ela. O espetáculo, baseado no best-seller de mesmo nome, lançado em 2003 pela Lya Luft, acabou por se tornar uma grande homenagem ao meu pai. O livro da Lya nasceu, sobretudo, do impulso emocional gerado por duas perdas fortes para ela em um curto espaço de tempo: a do pai e a do psicanalista, escritor e poeta Hélio Pellegrino, seu último companheiro. Vendeu bem, porque quase todo mundo, cada qual à sua maneira, passa por isso.

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Como Paulo Goulart entra nessa história?

O processo de transpor Perdas & Ganhos para o teatro ajudou-me muito, e também minha mãe e a família, a superar a perda de meu pai. Minha mãe estava em cena. Fiz uma adaptação incorporando outras personagens para trazer a história à vida dela.

A montagem foi um sucesso. Mas e depois?

A perda de meu pai e as ações em que o homenageamos aproximaram-me ainda mais de minha mãe. Continuamos com projetos no teatro e passamos a fazer palestras juntas. Nelas, a gente falava sobre arte, inspiração e passagem do tempo, entre outros temas. Em resumo, os pilares da filosofia de vida de nossa família. Até que, em 2020, veio o convite da Editora Letramento para escrevermos um livro sobre o teor dessas palestras.

Como vocês pensaram esse livro?

Eu seria a voz principal e mamãe faria comentários ao longo de todo o texto. Escolhemos começar por um momento forte: a perda do papai. Desejávamos contar como foi transformar esse momento de superação em arte no espetáculo e em outros momentos. Iríamos fazer um diálogo de duas gerações.

Aí começaram a fazer o livro e...

Mamãe pegou Covid. Aos 87 anos. Com diabetes e problemas cardíacos. Antes das vacinas. Morreu 21 dias após ser internada.

Sempre tive muito cuidado%2C durante o isolamento%2C para evitar que mamãe entrasse em contato com as pessoas%2C algo que ela sempre adorou fazer%2C como todos sabem. Mas bastou uma única visita%2C feita por uma pessoa querida%2C que tinha o vírus e não sabia%2C porque estava assintomática%2C para contaminá-la

(BETH GOULART)

No livro, você conta que tomou extremo cuidado para que Nicette, sempre muito comunicativa, não tivesse contato com as pessoas, algo que ela sempre adorou, por causa do risco que corria.

Exatamente. Só que bastou uma única visita, de uma pessoa querida, que estava contaminada, mas assintomática, para contaminar mamãe.

Você teve o cuidado de não revelar o nome dessa pessoa...

Isso. E não comentar nunca. Com a perda da mamãe, eu, como Lya, me senti na obrigação de dividir os efeitos desse impulso da perda. As descobertas que tive com a dor. Revelar o quanto acho e sinto possível descobrir potências adormecidas nessas situações. Por isso, o livro tem um tom pessoal.

Há ótimas histórias e lições de vida no livro. Um dos episódios mais marcantes é o de uma noite de espetáculo, com você e sua mãe em cartaz, acompanhada por um único pagante. Relembre essa passagem.

O respeito ao público foi um dos ensinamentos deixados por minha mãe. Ela sempre dizia que o público é soberano, o mais importante sempre. Estávamos em cartaz no Teatro de Arena, em São Paulo, com o espetáculo Os Efeitos do Raio Gama nas Margaridas do Campo. Naquela noite, tínhamos nove convidados, que evidentemente não pagaram ingresso, e um pagante. Note: apenas um único pagante.

Certa noite%2C havia apenas um único pagante em uma peça nossa. O produtor perguntou à mamãe se ela queria adiar a apresentação. Ela se negou. Disse%3A 'Ele saiu de casa para nos ver. Nos escolheu. Vamos fazer o melhor espetáculo de nossas vidas'. Pois bem%3A o pagante único era diretor de uma empresa importante%2C que no dia seguinte fechou a compra de mais de cem espetáculos para presentear seus funcionários. Uma lição inesquecível de minha mãe

(BETH GOULART)

E aí?

O produtor da peça, Luís Carlos Arutin, foi até o camarim e perguntou à mamãe se ela preferiria cancelar a apresentação. Recebemos todos, então, uma aula de respeito ao público.

Qual?

Ela respondeu ao Arutin: “De forma alguma. Esse único pagante saiu de sua casa hoje para nos ver. Pagou para nos ver. Nos escolheu entre tantas outras coisas que poderia fazer. Vamos realizar o melhor espetáculo das nossas vidas porque ele merece. Faremos uma apresentação linda. Daremos o melhor a ele”. E assim foi. Fizemos uma beleza de apresentação.

E a revelação no dia seguinte?

No outro dia, mamãe recebeu uma ligação do Arutin dizendo o seguinte: “Nicette, você está sentada? Sabe aquele único pagante de ontem? Pois bem: ele, diretor de uma grande empresa, comprou mais de cem espetáculos fechados da temporada para presentear os funcionários do grupo”.

Quase inacreditável.

Pois é, para você ver como as boas atitudes são recompensadas. O público, os jornalistas e os formadores de opinião iam ao teatro nos assistir e viam a casa cheia. Ficamos lotados por mais de um mês, o que gerou ótima imagem externa do espetáculo. Um sucesso, durou mais de três anos, com espetáculos por todo o estado de São Paulo, temporadas no Rio e apresentações em outras cidades. Tudo com casa lotada.

Livro traz episódios importantes das artes cênicas
Livro traz episódios importantes das artes cênicas Livro traz episódios importantes das artes cênicas

Melhor prêmio para a coragem de sua mãe impossível.

Uma lição inesquecível. Todo artista, do iniciante ao mais conhecido, está sujeito a algo do tipo, sobretudo no teatro, onde o elenco só pode fazer o espetáculo em um lugar por vez. Até hoje lembro-me desse aprendizado nos dias em que não tenho um público satisfatório em um projeto. Jamais podemos subestimar a quantidade de pagantes. Precisamos dar sempre o nosso melhor porque o público é o senhor de tudo.

Um dos espetáculos mais importantes e premiados de sua carreira foi Simplesmente Eu, Clarice Lispector. No livro, você faz questão de expor sua paixão por essa escritora, inclusive com a lembrança do ótimo e provocativo conto Perdoando Deus.

A intensidade com que eu me via nos textos de Clarice Lispector sempre me impressionou. Nesse conto, ela começa elogiando Deus, o dia lindo, todas as coisas, até que se depara, em casa, com um rato morto. Ela odiava rato. A situação, aparentemente menor, leva o texto a uma situação de negação das coisas e de Deus, no fundo uma provocação da autora. Mas, ao final, ela recupera a admiração pelo Criador com a ideia de que Deus é tudo, da beleza aos desafios.

A maratona de lançamento de Viver É uma Arte tomará seu tempo nas próximas semanas. Quais são seus planos para depois dela?

Minha ideia é remontar o espetáculo Perdas & Ganhos, agora comigo no palco. Temos um belo material, imagens bonitas gravadas da primeira montagem, inclusive os trechos da homenagem que mamãe faz ao meu pai na peça, que poderão ser reproduzidas na nova montagem. Penso que será emocionante. A vida caminhou para que eu vivesse um momento pessoal semelhante ao estruturado pela Lya no livro e que se destaca na adaptação do texto. Acredito que minha experiência e as formas encontradas por mim para superar perdas tão importantes ajudarão muita gente, a exemplo do que ocorreu com o livro e a primeira montagem do espetáculo. Muitos vão se identificar porque passaram por isso, principalmente como efeito da pandemia. Nosso trabalho tem arte, estética, mas também muito de comunicação e formação de opinião.

Tomara. Vamos torcer.

Tomara.

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