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Cabrini: 'Jornalista morrer perto de mim na guerra abala, mas não me faz pensar em desistir da carreira'

Repórter da RecordTV revela as dificuldades vividas na cobertura em solo ucraniano, que resultou no documentário Missão Ucrânia, e relembra as suas principais investigações jornalísticas

Entrevista|Eduardo Marini, do R7

Jornalista mostra coragem e sensibilidade nas arriscadas coberturas que realiza no Brasil e no mundo
Jornalista mostra coragem e sensibilidade nas arriscadas coberturas que realiza no Brasil e no mundo Jornalista mostra coragem e sensibilidade nas arriscadas coberturas que realiza no Brasil e no mundo

A invasão da Ucrânia pela Rússia e o conflito em solo ucraniano completam 116 dias neste domingo (19). Entre as coberturas jornalísticas do combate feitas por brasileiros, destacaram-se — uma vez mais — o compromisso profissional, sensibilidade, seriedade e talento do repórter Roberto Cabrini, enviado à Ucrânia pela RecordTV.

Cabrini permaneceu por 24 dias na Ucrânia durante o mês de março de 2022. O trabalho gerou uma série de reportagens dramáticas e envolventes para a emissora. E, agora, o forte e revelador Missão Ucrânia, documentário nos moldes de Missão Cabul, realizado por ele e seu parceiro de trabalho meses atrás, durante o conflito no Afeganistão. Missão Ucrânia faz parte do catálogo do serviço de streaming PlayPlus, da RecordTV, com data de liberação para assinantes marcada para 14 de junho.

Nessa conversa com o R7 Entrevista, escoltado em casa por Dasha, uma de suas duas cadelas ("moramos aqui por permissão delas", brinca), Cabrini detalha passagens e enumera dramas e dificuldades vividos em território ucraniano. Compara ações no Afeganistão e na Ucrânia. Dá detalhes do abalo provocado pela morte de um colega jornalista americano, baleado por russos, em 13 de março, a menos de 2.000 metros de onde ele estava, e faz comentários sobre as investigações jornalísticas mais importantes realizadas em sua brilhante carreira. Uma riqueza de conversa em meio a relato de sofrimento e risco para todos os lados. Acompanhe:

O que é mais difícil na cobertura jornalística de uma guerra?

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Ficamos 24 dias em território ucraniano nessa nova missão. Toda guerra tem um ponto em comum e, da mesma forma, cada uma delas possui suas particularidades. No caso da Ucrânia, um dos primeiros desafios foi o frio, muito intenso, sobretudo nos primeiros dias. Pegamos entre 6 e 12 graus negativos.

Como você destacou situações comuns e particularidades, analise esses dois pontos numa comparação entre o trabalho no conflito do Afeganistão, matéria-prima do documentário Missão Cabul, e o realizado agora, que gerou o material de Missão Ucrânia

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No Afeganistão há o fundamentalismo religioso. O Talibã, que havia controlado o país a partir do interior. E a saída dramática do país dos americanos, que tentaram por 20 anos exterminar o Talibã, sem sucesso. Não conseguiram e, em determinado momento, se aliaram a eles para combater um inimigo mais duro: o Estado Islâmico. Por isso, no período em que estávamos no Afeganistão, a grande ameaça vinha do risco de ações do EI. Ataques terroristas em geral. Gestos extremos e atos inesperados são comuns entre fundamentalistas religiosos. Podem te tratar com generosidade e atenção ou te matar, de um momento para o outro, caso não gostem de um gesto, atitude ou algo surgido e relacionado a você. Essas situações são quase sempre imprevisíveis.

E na Ucrânia?

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Por outro lado, no Afeganistão não houve um ataque em larga escala como ocorre desde o início da invasão do território ucraniano pela Rússia, uma das maiores potências bélicas e máquinas de guerra do mundo, com armas poderosas e ataques sistemáticos. É mais tenso e aparentemente mais perigoso na Ucrânia, embora no Afeganistão houvesse sempre o risco das surpresas geradas pelo fundamentalismo religioso. As duas situações são perigosas, mas a guerra na Ucrânia, atacada por um exército poderoso, apresenta maiores riscos.

Cabrini em ação no território afegão durante a Missão Cabul
Cabrini em ação no território afegão durante a Missão Cabul Cabrini em ação no território afegão durante a Missão Cabul

Os ucranianos reagem à invasão com determinação desde o início.

Com muita coragem. Os adultos mais velhos, em grande parte, ainda guardam ligações com a Rússia. Falam russo e preservam outras referências culturais. Mas jovens, adolescentes e até jovens adultos, em suprema maioria, fogem do idioma do invasor. Defendem o fortalecimento dos laços políticos, sociais e econômicos da Ucrânia com a União Europeia e, em termos militares, a adesão à Organização do Tratado Atlântico Norte, a Otan, a aliança militar dos países do Ocidente, algo visceralmente condenado pelo governo da Rússia. É comum ver nas vilas, por exemplo, as pessoas produzindo e portando armas rudimentares para resistir às forças russas.

O patriotismo fala alto.

Exato. Por isso, os russos encontram dificuldade para tomar completamente Kiev — uma cidade linda, histórica, dos escritores e poetas — e dominar o país. Não previam uma resistência nessa escala. Uma coisa é chegar e subjugar militarmente. A outra é obter apoio interno para tomar conta definitivamente do poder. Para isso seria necessária a adesão popular — mas a suprema maioria dos ucranianos apoia a luta pela liberdade do país.

Não podíamos produzir luminosidade nos vagões durante a viagem à noite. Isso poderia despertar a atenção dos russos e gerar um ataque ao trem. E não é que alguém acendeu um isqueiro ou ligou um celular logo no trecho mais perigoso da viagem%2C onde havia uma concentração muito grande de artilharia russa%3F Em termos pessoais%2C foi um dos momentos de maior tensão

(Roberto Cabrini)

A viagem de vocês da fronteira com a Polônia para Kiev, capital ucraniana, foi complicada, não?

Muito tensa. Havia muita dificuldade de locomoção na Ucrânia. Os horários de trem das cidades próximas às fronteiras oeste para Kiev eram erráticos, raros, quase sempre apenas noturnos. Eles recomendavam expressamente para não produzirmos qualquer luminosidade dentro dos vagões durante a viagem. Luzes de celulares, lanternas, fogo de isqueiros e coisas do tipo poderiam despertar a atenção dos russos e gerar um ataque ao trem. E não é que alguém acendeu um isqueiro ou ligou um celular logo no trecho mais perigoso da viagem, na região metropolitana de Kiev, onde havia uma concentração muito grande de artilharia russa? Em termos pessoais, foi um dos momentos de maior tensão para nós.

E a alimentação?

Outro ponto desafiador. Naquele período, em Kiev, havia toques de recolher de até 35 horas ininterruptas. Como a gente saía cedo e voltava tarde, muitas vezes tudo estava fechado por causa do toque. Comer, nesses momentos, se tornava algo muito complicado. Tentávamos fazer algum planejamento dentro daquela realidade. Ficamos algumas vezes isolados no ponto de hospedagem. Sem contar que, no início, foi difícil achar lugares minimamente estruturados para ficarmos.

Havia tensão também na hora de dormir, mesmo depois, no hotel em Kiev?

Muita. A suprema maioria dos alertas de sirenes anunciando ataques aéreos era feita à noite e de madrugada, quando ocorria a maior parte dos ataques aéreos e de artilharia russos. A gente ouvia as explosões. Nessa situação, dá para imaginar que o sono era extremamente cortado, repicado, e a gente acordava cedo todos os dias para conferir os alvos dos ataques noturnos. Certa vez, um deles atingiu um ponto a menos de 1.000 metros de onde estávamos hospedados. Tínhamos também a preocupação constante de identificar e mapear a localização dos abrigos antiaéreos aos quais poderíamos recorrer no caso de um ataque que nos pegasse desprotegidos.

Como foi a história do shopping center que vocês visitaram?

Estivemos nesse shopping logo nos primeiros dias em Kiev para comer, comprar algo e fazer entrevistas. Ele funcionava normalmente, intacto, com boa quantidade de pessoas. Dias depois, voltamos com ele praticamente destruído por ataques aéreos russos. O pensamento de que ele poderia ter sido alvo enquanto estávamos lá é imediato, não dá para evitar.

E a do hospital infantil?

Registramos histórias dramáticas de médicos heroicos, que faziam cirurgias complicadas em crianças feridas enquanto lá fora, os russos castigavam as construções e matavam civis em bombardeios. Além de tudo, os médicos precisavam lidar com as dificuldades estruturais e de abastecimento criadas pelos ataques impiedosos à região. Coisa triste.

Você testemunhou dramas familiares?

Muitos. Os homens não podem sair do país. São obrigados pelo governo a ficar para serem incluídos na guerra, se for o caso. As mulheres e crianças foram liberadas. Famílias se separaram com a partida das mulheres, com seus filhos e netos, para países de fronteira. E se rompem de vez porque muitos desses homens morreram e ainda morrem em combate.

No dia 13 de março, um domingo, o jornalista americano Brent Renaud, 50 anos, que trabalhou no jornal The New York Times, foi baleado e morto por tropas russas na cidade ucraniana de Irpin, na região metropolitana de Kiev. Um repórter que o acompanhava, também atingido, foi socorrido em um hospital de Kiev.

A gente estava a menos de 2.000 metros do local onde ele foi morto. Cobríamos a mesma coisa naquele dia, em dois setores diferentes de Irpin: a situação dos ucranianos que estavam se refugiando, deixando suas casas apressadamente, em situação de abandono e desespero, porque a região era alvo de duros ataques dos russos.

Ficou abalado ao saber da morte de Renaud? 

Um dos pontos em comum nessas coberturas é que jornalistas de países diferentes e culturas distintas se ajudam. Reação natural de solidariedade diante de situações de risco. A gente troca informação sobre lugares mais e menos perigosos, onde é ou não possível passar e personagens que poderão dar entrevista, entre outras coisas. A maioria dos jornalistas fica próxima, muitas vezes nos mesmos hotéis e alojamentos. A gente se cruza no café da manhã, conversa um pouco, troca alguma informação durante o dia, dialoga à noite. Então, quando morre um jornalista, todos ficamos abalados.

Claro que passa (pela cabeça a ideia de que o jornalista morto poderia ter sido você). Todos sabemos que algo do tipo poderá acontecer com alguém. Vamos preparados para isso. Faz parte do ato de cobrir uma guerra. Pessoas morrem em guerras. Mas%2C quando acontece%2C o abalo é inevitável

(Roberto Cabrini)

Passa pela cabeça que poderia ter sido com você?

Claro que passa. Todos sabemos que algo do tipo poderá acontecer. Vamos preparados para isso. Faz parte do ato de cobrir uma guerra. Pessoas morrem em guerras. Mas, quando acontece, o abalo é inevitável. 

Esses episódios fazem pensar em desistir?

De jeito nenhum. A gente sente muito. São profissionais como nós. As famílias deles estão esperando o retorno, como as nossas. O Renaud, por exemplo, eu conhecia bem o trabalho dele. Nos encontramos em coberturas anteriores e nesta. Era ótimo profissional e boa gente. A gente fica abalado, mas nada que influencie minimamente na decisão de continuar a fazer a cobertura ou não. Bola para a frente: a obrigação jornalística segue.

Em casa com a cadela Dasha, em raro momento de descanso: 'vivemos aqui por permissão delas'
Em casa com a cadela Dasha, em raro momento de descanso: 'vivemos aqui por permissão delas' Em casa com a cadela Dasha, em raro momento de descanso: 'vivemos aqui por permissão delas'

Você tem uma carreira longa, premiada, recheada de investigações e grandes coberturas nacionais e internacionais. Lembre as principais.

A guerra no Iraque e, agora, as ações no Afeganistão e na Ucrânia foram trabalhos desafiadores. A investigação da banda podre em setores da polícia foi outro momento tenso da carreira. É um inimigo que te ameaça. Quando você encontra fugitivos antes dos policiais, a pressão é grande. O PC Farias pagava mesada a setores corruptos da polícia para não ser localizado. A Georgina de Freitas, fraudadora do INSS, a mesma coisa. A investigação sobre pedofilia envolvendo grandes líderes da Igreja Católica, com abuso sexual de jovens e coroinhas, que me rendeu o Prêmio Esso no jornalismo, foi outra investigação trabalhosa.

Você deve ter sido pressionado para interromper esses trabalhos...

Em muitas ocasiões. Costumo dizer que pressão é o produto primeiro e direto de qualquer investigação. Investigados não mandam flores. Eles intimidam, processam, ameaçam o profissional, sua família, sua equipe de trabalho, o veículo de comunicação em que você trabalha, tudo isso. Mas quando alguém tenta te intimidar, é o sinal maior de que você está diante de algo importante. Como no meu caso, como disse, esses riscos não são suficientes para me fazer recuar, vamos em frente.

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