Entrevista Zé Roberto: 'Estou tão inserido no universo feminino que não me vejo mais treinando equipes de homens'

Zé Roberto: 'Estou tão inserido no universo feminino que não me vejo mais treinando equipes de homens'

Técnico da seleção brasileira feminina de vôlei analisa a campanha emocionante da prata no Mundial na Holanda e dá detalhes sobre o misto de clube e projeto social dirigido por ele em Barueri (SP)

  • Entrevista | Eduardo Marini, do R7

Resumindo a Notícia

  • Técnico ganhou ouro olímpico do vôlei masculino nos Jogos de Barcelona 1992
  • Ouros olímpicos com o feminino são dois: em Pequim 2008 e Londres 2012
  • Além dos três ouros, conquistou a prata com o feminino no Japão 2021
  • Dirige também o Barueri, que oferece educação, moradia e estrutura para atletas da base
Técnico é o único do vôlei mundial a ganhar ouro olímpico com feminino e masculino

Técnico é o único do vôlei mundial a ganhar ouro olímpico com feminino e masculino

WANDER ROBERTO/INOVAFOTO/DIVULGAÇÃO/CBV

O ex-jogador de vôlei e atual técnico da seleção brasileira feminina de voleibol José Roberto Lages Guimarães está tão adaptado ao trabalho no universo das mulheres que não se imagina mais treinando homens. Talvez não seja mesmo necessário, porque sua missão está devidamente cumprida nos dois lados: Zé Roberto, como os próximos o chamam, é o único técnico da história do voleibol mundial a ser campeão olímpico feminino e masculino. Conquistou o ouro com os homens nos Jogos de Barcelona 1992 e com as mulheres em Pequim 2008 e Londres 2012. É o único tricampeão olímpico do esporte brasileiro. Um feito.

São as medalhas principais de uma vasta coleção, que inclui ainda dezenas de ouros, pratas e bronze nos clubes e, pelas seleções, em vários Mundiais e edições do Grand Prix, além de um vice-campeonato olímpico no Japão 2021. Nesta conversa com o R7 ENTREVISTA, Zé Roberto, paulista da pequena Quintana, 68 anos, analisa a bela e emocionante campanha de prata no Mundial de 2022, na Holanda, encerrado dias atrás, apesar da derrota na final para a Sérvia.

Além disso, detalha sua participação na direção das equipes femininas sub-17, sub-19, sub-21 e adulta do Barueri Volleyball Club, na região metropolitana de São Paulo. E também no centro de treinamento do clube, o Sportville, na mesma cidade, com 30 mil metros quadrados e 23 apartamentos, que abriga, entre outras jornadas, temporadas da seleção feminina, dirigida por ele desde 2003.

Ele comenta a parceria entre seu clube e a prefeitura local para a revelação de jovens talentos. “Muitas das atuais jogadoras da seleção foram reveladas em nosso clube. Isso nos enche de orgulho. Acima de tudo, nossa meta é revelar cidadãos.” Alto do pódio. Acompanhe:

O Mundial de Vôlei é um campeonato difícil do início ao fim. Primeiro, pela duração. É uma competição longa, em que você leva ponto de todos os jogos. Os resultados, pontos e sets ganhos e perdidos influenciam o meio e o meio, o fim. Por causa desse modelo, todo jogo se transforma, na prática, numa final, pela obrigação de vencer o tempo todo

JOSÉ ROBERTO GUIMARÃES

Faça uma análise da campanha da seleção feminina no último Mundial, na Holanda.
José Roberto Guimarães –
Foi um campeonato difícil do início ao fim. Primeiro, pela duração. É uma competição longa, em que você leva ponto de todos os jogos. Os resultados, pontos e sets ganhos e perdidos influenciam o meio e o meio, o fim. Por causa desse modelo, todo jogo se transforma, na prática, numa final, pela obrigação de vencer o tempo todo.  Tivemos uma derrota sobre o Japão na primeira fase e, pelo regulamento, passamos a jogar com uma pressão enorme. Uma nova derrota poderia significar a desclassificação a partir das quartas de final.

E a partir da segunda fase?
A gente entrou nela tendo a Itália, que era favorita ao título ao lado da Sérvia, e depois a China. Seleções fortíssimas, mas vencemos as duas, e aí a gente soube que nossos jogos passaram a mobilizar uma torcida maior no Brasil.  Em seguida vencemos Holanda, a dona da casa, Bélgica e Porto Rico. Nas quartas, pegamos o Japão.

Orientando a seleção feminina em mais uma disputa dura

Orientando a seleção feminina em mais uma disputa dura

WANDER ROBERTO/INOVAFOTO/DIVULGAÇÃO/CBV

Esse jogo incendiou de vez a torcida no Brasil.

Pois é, soubemos disso. Foi extremamente complicado, um dos mais difíceis da minha carreira de treinador, posso dizer. A gente saiu perdendo de dois sets a zero, mas conseguimos virar para três sets a dois sob uma pressão incrível. Na semifinal, a Itália, outra complicação, porque ganhamos deles na primeira fase e tinha ficado um clima meio estranho. Mas ganhamos e fomos para a final contra a Sérvia.

A Sérvia chegou à final sem ter perdido.
Isso. Tem ótimas jogadoras, algumas em fase excepcional. Sofreu um pouco contra a Polônia, mas ganhou por três a dois. Uma grande seleção, que, além de tudo, nos pegou em um dia infeliz. E nos venceu por três sets a zero. Mas o que ficou desse Mundial foi a luta, a determinação e a entrega que essas meninas tiveram, com superações durante todo o campeonato. Esses certamente foram os fatores principais de mobilização das pessoas no Brasil.

Você teve baixas antes do Mundial?
Exato. Três, a partir da convocação. Júlia, Ana Cristina e Diana, que ficaram fora, tinham condições de brigar por um espaço na seleção e nos ajudar. Mas, apesar dessas adversidades, o time conseguiu chegar a uma final de Mundial, que é uma das disputas mais difíceis do ciclo olímpico. Agora começamos a preparação para a disputa, em 2023, da classificação para a próxima Olimpíada.

Tivemos problemas de ausência de ao menos uma jogadora fora da média em todos os Mundiais. Em alguns, perdemos mais de uma atleta antes do início. Em uma equipe com seis em quadra e 12 na convocação, uma atleta faz diferença. Mais de uma, então, imagine. Já nas Olimpíadas fomos sempre completos. Isso talvez ajude a explicar por que nossos resultados são melhores em Jogos Olímpicos

JOSÉ ROBERTO GUIMARÃES

O vôlei feminino brasileiro, sob sua direção, tem uma trajetória olímpica brilhante, com dois ouros e uma prata. Mas nos Mundiais, embora tenha bons resultados, a seleção não atinge a excelência vista nos Jogos. Bate na trave. São quatro vices. Conseguimos mais sucesso nas finais olímpicas do que nos Mundiais. Como explicar isso?
Alguns fatores podem ajudar. Se você fizer um levantamento dos Mundiais que disputamos comigo na direção técnica, verá que tivemos, por vários motivos, problema de ausência de ao menos uma jogadora fora da média em todos eles. Em alguns, perdemos mais de uma atleta antes do início. Em uma equipe com seis em quadra e 12 na convocação, uma atleta faz diferença. Mais de uma, então, imagine. Já nas Olimpíadas fomos sempre completos, mesmo porque todo mundo quer disputá-las, por motivos pessoais, profissionais ou ambos. Por algumas particularidades, isso nos prejudica mais do que às seleções europeias e americanas. Nos Mundiais, sempre perdemos jogadoras voltando ou iniciando gravidez, e em Olimpíadas isso praticamente não ocorreu. Outra questão é a longa duração dos Mundiais, com mata-mata só a partir das quartas de final, um formato que parece incomodar mais nossas jogadoras do que as adversárias.

De olho em mais um ataque de suas comandadas

De olho em mais um ataque de suas comandadas

WANDER ROBERTO/INOVAFOTO/DIVULGAÇÃO/CBV

Você é o único técnico da história do vôlei mundial a ganhar ouro olímpico dirigindo masculino e feminino, não é?

Por enquanto sim (risos).

Apesar de os dois serem chamados de voleibol, no feminino o treinamento e a condução são bem diferentes do que se faz no masculino. A relação de convencimento e conquista da confiança exige comportamentos distintos. A medida da delicadeza no formato do relacionamento precisa ser outra. Metabolismo, funcionamento do organismo, tudo isso é distinto. As diferenças são claras nos aspectos físico, técnico, tático, mental e emocional.

JOSÉ ROBERTO GUIMARÃES

Quais as diferenças de liderar equipes femininas e masculinas?
Perguntam-me muito o que é mais difícil: treinar mulheres ou homens. Não tenho dúvida: treinar mulheres. Homens são mais fáceis de liderar porque tudo é mais direto com um técnico do sexo masculino. No jogo, o homem quer bater mais forte, mais alto, é mais agressivo. Para mim é mais simples, menos complexo treinar homens. Apesar de os dois serem chamados de voleibol, o treinamento é diferente, a condução é diferente e, claro, a relação de convencimento e conquista da confiança exige comportamentos bem distintos. A medida da delicadeza no formato do relacionamento precisa ser outra. A gente estuda o universo feminino de outra maneira. O metabolismo, o funcionamento do organismo, tudo isso é distinto e precisa ser muito estudado por um homem. As diferenças são claras nos aspectos físico, técnico, tático, mental e emocional.

Pensa em voltar a treinar equipes masculinas?
Não me vejo mais treinando grupos masculinos. Estou tão inserido no universo feminino, e familiarizado com ele, que não me vejo mais dirigindo times e seleções de homens. Aprendi muito com as mulheres nestes anos e me sinto bem assim. É praticamente certo que eu só treine mulheres daqui para a frente, até o final da carreira.


Quais os jogadores e jogadoras de vôlei que você mais admirou ou gosta atualmente.
Não vou falar de jogadoras brasileiras porque trabalho com elas. É complicado. E, se me permite, nem de brasileiros, para não ferir um ou outro. Tivemos várias fases. Na minha época de jogador, era fã do Nekoda, levantador do Japão. Fantástico. Depois surgiu o Tomasz, que morreu dias atrás, aos 69 anos, o cara que lançou essa bola cortada do fundo, com salto antes da linha dos 3 metros, tão comum hoje em dia. Era fã do japonês Seiji Oko, campeão olímpico de 1972. Em seguida vieram os italianos Andrea Zorzi e Andrea Gianni, o americano Karch Kiraly, gênio, único jogador a ganhar ouro olímpico na quadra e na praia… Entre as mulheres, a Sokolova, que eu treinei, foi excepcional jogadora, a coreana Kim, a russa Gamova, a perunana Cecília Tait, nos anos 1970… enfim, muita gente boa em vários períodos. Hoje nós temos jogadoras como a Egonu, da Itália, que respondem por metade dos ataques das equipes em que jogam.

Feliz com uma vitória do Barueri, time comandado por ele na Superliga A

Feliz com uma vitória do Barueri, time comandado por ele na Superliga A

WANDER ROBERTO/INOVAFOTO/DIVULGAÇÃO/CBV

Além da seleção, você é técnico e parceiro da equipe feminina do Barueri Voleiball Club, na região metropolitana de São Paulo, e também do centro de treinamento do clube, o Sportville, na mesma cidade, que costuma abrigar temporadas da seleção, de outros clubes e também eventos privados. Fale sobre esses projetos.
Foi uma ideia que tivemos em 2015. A prefeitura tinha acabado com o esporte de competição em Barueri e perdemos muitas jogadoras da base. Eu cuidava da base da seleção na época e percebi que muitas daquelas jogadoras eram de times de Barueri que haviam migrado para outras equipes. Fui ao prefeito e ele nos cedeu o ginásio para continuar com o projeto ligado ao Barueri Voleyball Club. Disputamos a Série B, nos classificamos e hoje estamos na Superliga A. Temos todas as etapas a partir dos 14 anos: sub-15, sub-17, sub-19, sub-21 e adultas. Metade do elenco do Barueri que disputa a Superliga A veio de nossa base. Isso nos orgulha bastante. Ainda não ganhamos campeonato, mas temos ficado entre a quinta e a sétima posição. Isso é muita coisa para um projeto com apenas seis anos, que se sustenta na batalha. Vou te dar outro dado importante: 11 das 20 convocadas por mim para a seleção brasileira feminina neste ano foram formadas ou passaram pelo nosso clube ou projeto. Hoje tem  jogadora lançada por nós jogando no exterior.

O projeto social do Barueri é, sem dúvida, um orgulho. Mas temos passado por apertos para sustentá-lo. Eu mesmo tenho colocado dinheiro do próprio bolso para tapar buracos. A gente tem patrocinadores que nos ajudam na base e no adulto, mas precisamos de outros parceiros e patrocinadores, porque não dou conta de bancar sozinho boa parte das despesas

JOSÉ ROBERTO GUIMARÃES

Um projeto social elogiável.
Sem dúvida um orgulho. Agora, a gente tem passado por apertos para sustentar o projeto. Eu mesmo tenho colocado dinheiro do próprio bolso para tapar buracos. A gente tem patrocinadores que nos ajudam na base, como a Epson e a CCR, e no adulto a Veloe, mas a gente precisa de outros parceiros e patrocinadores, porque eu não dou conta de bancar sozinho boa parte das despesas. Por isso aproveito para dar esse alerta a quem se interessar seguir conosco. Mais do que jogadoras para a seleção,  queremos formar cidadãs, com estudo, curso superior e futuro em várias áreas.

O centro de treinamento Sportville é ligado ao clube?
Sim. Construí esse centro entre 1992 e 1994. Parte dessas meninas mora e faz suas refeições lá. Nós damos ênfase à parte acadêmica. Temos convênio com duas escolas, Campos Salles e Amorim. As meninas estudam lá com bolsas e isso nos ajuda muito a dar continuidade ao projeto que, como disse, é de esporte e educação. Não vejo um caminhando sem o outro. O centro também funciona ocupado por eventos e outras coisas não relacionadas ao clube. Recebemos, inclusive, outras modalidades. Recentemente abrigamos o masculino e o feminino sub-15 de basquete. Estão lá. Recebemos grupos de todas as modalidades. Futebol do Cruzeiro, Atlético, Fluminense, São Caetano, Internacional… muita gente esteve no Sportville. A estrutura é simples mas funcional para todas as modalidades: basquete, futsal, handebol… Temos oito quadra de tênis, 23 apartamentos e um ginásio poliesportivo coberto. São 30 mil metros quadrados. Um bom espaço para desenvolver nosso projeto esportivo e social.

Boa sorte na busca de novos parceiros para esse trabalho bacana.
Precisarei. Muito obrigado.

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